Apetece-me chorar.
Apetece-me deitar para fora anos e anos de ódio e mágoa que as pessoas guardam de mim.
Nem todas as pessoas. Apenas as que me amaram. E que decidiram que o amor que lhes dediquei era pouco e que queriam mais do que eu na altura, e talvez ainda agora, possa oferecer a alguém.
Hoje despediste-te de mim. Ele também. Ele tem apagado de mim as memórias de um tempo em que éramos dois e que nunca fomos um.
Ainda assim guardei memórias que ele agora insiste em pintar de vermelho. Vermelho rubro de dor e sarcasmo. Ele mastigou tudo o que poderíamos ter dito um ao outro.
Ficou assim, suspenso.
Tu não. Tu sabes em mim as palavras que ainda são tuas. As que não sei dizer. As que escondo de ti e dos outros e de todas as pessoas.
Conheces-me.
Despediste-te de mim, com o poema que tantas vezes ansiei e que não continha as palavras que sonhei ler nele.
Um dia pedi-te que me escrevesses. E tu disseste que não sabias, que as palavras eram punhais que te rasgavam as pálpebras e te confundiam os sentidos ao ponto de deixares de reconhecer o teu próprio rosto e o teu destino.
Hoje deste-me um poema como quem dá uma lágrima.
Espelhaste nele o vazio que construíste para nós. Durante anos procurei o teu colo e a tua voz e o conforto manso do teu peito. Ainda que o teu peito nunca me tenha servido de colo. Ainda assim. Era no teu peito que apagava todas as dores de estar viva e pulsar e sentir e ser eu.
Hoje deste-me um poema como quem dá um grito.
A romper o silêncio. O silêncio que disse tanto e que não nos diz nada mais que não saibamos já, e não tenhamos escrito em papel violeta que deixámos voar e perder-se no lago pesado e azul.
Hoje deste-me um poema e deixaste o teu corpo morto nos meus braços. Num último suspiro.
Amei-te como nunca mais saberei amar ninguém. Amei-te com a força dos corpos que nunca se tocaram e o mistério dos abraços que se esqueceram no tempo.
Amei-te como todos quiseram ser amados e eu não podia e não sabia amar ninguém mais além de ti.
Hoje deste-me um poema e em troca levaste o amor que me susteve anos a fio. Deixaste-me aqui, sozinha, sem memórias, sem as tuas mãos e sem o teu rosto que me apagava as lágrimas cansadas em dias de chuva e noites de sal.
Ainda me apetece chorar... Ainda me apetece chorar... Francamente, ainda me apetece chorar.
Se eu tivesse dito "amo-te" e tivesse violado o teu corpo e tivesse arrancado a tua alma e tivesse gritado no teu quarto e tivesse rasgado os teus olhos e tivesse feito tudo ao contrário e tivesse esquecido todas elas, todas as mulheres que deslizaram nos teus braços e tivesse esquecido que me disseste que as amavas e tivesse esquecido que disseste que eras velho e cansado e gasto e tivesse revivido o menino que me deste um dia e te tivesse beijado loucamente e tivesse deixado o meu corpo nu nos teus braços e tivesse chorado e chorado e chorado todas as lágrimas que um dia semeaste em mim e tivesse pedido que ficasses... Ficavas?
Francamente, ainda me apetece chorar...